À guisa de resenha de um livro raro.
(...)“Coisa terrível é um homem louco de ressurreições”. (...)
(...) Que o meu coração
cavando ao pé do Grande Mistério,
em meio a tanta máscara dormida
e tanto pranto
e tanto grito,
vislumbre a criatura nua na terra,
ali, sob os lençóis da existência,
ordenhando seu próprio Destino. (...) [1]
No Projeto Percurso do Artista: Achutti, se era excelente e oportuna a idéia de publicar um catálogo para documentar a histórica exposição do fotógrafo Luiz Eduardo Robinson Achutti, o resultado final excedeu excelência e oportunidade, como também aquilo que se conhece corriqueiramente como um objeto-catálogo. Em que excedeu e como? Voilà: a mão do criador Achutti, o mesmo que em duas de suas publicações acadêmicas (refiro-me especialmente às teses de mestrado e doutorado), criou outro tipo de linguagem para o objeto-livro, em que texto verbal e o texto imagístico estabelecem em simultaneidade outro tipo de essência discursiva, desta vez, interagindo com o projeto, interferiu transformando-o em um raríssimo Livro, que ultrapassa a idéia de catálogo e traz, simultaneamente, a sua biografia / autobiografia.
Destaco alguns indícios que apontam para a identificação desta interferência. Valha aqui o vocábulo interferir em seu sentido primeiro, tomada sua origem etimológica.[2] Ressalvo que esta interferência, certamente, só foi possível devido à confluência de várias forças convergentes, a saber: a força empreendedora da Diretora do Departamento de Difusão Cultural, Cláudia Boetcher; a clareza de objetivos da Coordenadora do projeto “Percursos do Artista”, Juliana Gonçalves Mota – por favor, leia-se o límpido e conciso texto escrito por ela, na primeira orelha do Livro – e o trabalho de Boris Cossoy, que, pelo que se pode ler no percurso da exposição, expressa ao mesmo tempo a arte da difícil tarefa de curadoria, o talento de nela interagir com o artista em foco e a ciência da autoria. Nesta ambiência de inter-relações, certamente aberta, receptiva, manifesta-se o autor Achutti, que se coloca no fluir dos materiais que se sucedem num caminho de interesse crescente para o leitor - como ocorre também na exposição.
Os materiais expostos são fascinantes para as aprendenças que o leitor venha a realizar no convívio com o livro. As imagens, os documentos e as fotos falam por si e pelas conexões que estabelecem com o todo. Tive a fortuna de acompanhar, um a um, de uma ou outra maneira, o lançamento dos livros de fotos que Luiz Eduardo Robinson Achutti publicou; assim, neste registro, quero ater-me primeiro às crônicas e, depois, à reflexão imagética deste poeta da fotografia.
Crônicas: este é um capítulo importante e muito raro em catálogos e/ou publicações congêneres. E identifico, na presença delas no Livro, mais um traço de transformação operado pela interferência criadora de Achutti, fazendo esta publicação passar da categoria de catálogo para a categoria de Livro biográfico / autobiográfico simultaneamente. Pergunto ao leitor: que catálogos de exposição trazem tão farto e importante material de reflexão, escritos pelo próprio artista em foco? Que o leitor considere, de novo, a idéia de projeto expressa no texto de Juliana G. Mota, mencionado acima, e o fato de o livro disponibilizar textos do professor, do pesquisador de história da fotografia, do sociólogo, do fotógrafo, do sistematizador de técnicas de seu ofício – cuja prática é passada no quotidiano de sala de aula para seus alunos – reunidos para melhor deflagrar, em livro, as aprendenças do leitor, em perspectivas múltiplas. Em outras palavras, a idéia de reunir estes textos vem em benefício do aprofundamento dos conhecimentos de estudantes, artistas, colegas de profissão, público em geral.
Ainda quanto aos textos, em si cada um e no todo, eles constituem peças de rara excelência literária. (Há que dizer ainda que são singulares, se vistos no universo dos textos acadêmicos deste presente histórico, no qual predominam modismos e jargões a repetir uma espécie de ‘estilo burocrático’ que de tempos em tempos muda conforme a voga). Achutti confirma o que contemporaneamente a história nos tem mostrado: alguns artistas se destacam como verdadeiros ‘estilistas’ em seus textos. (A palavra estilista aqui se refere a estilo literário). Eles se revelam quando se os lê em sua correspondência epistolográfica ou em seus diários de trabalho e/ou outros registros pessoais. Cito exemplos sem qualquer parti pris: para o primeiro caso, as cartas de W. A. Mozart; para o segundo, os diários de trabalho de Paul Klee e as notações estéticas de Victor Vasarely.
Tanto nos textos quanto na fotografia, há quem identifique em Achutti a autêntica posição de esquerda, do que historicamente chama-se de esquerda. Sugiro ao leitor pensar que esquerda, enquanto atributo essencial do espírito criador de Achutti, é uma imanência e não um rótulo; imanência sobre a qual Carlos Drummond de Andrade, em seu livro de estréia de 1930, refletiu assim: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.” [3] Não era em vão que o poema intitulava-se Poema de Sete Faces. A coerência entre a vida e a obra de Achutti, contida também nesta imanência, neste atributo de seu espírito, está presente na exposição e no Livro que a documenta e vale como força de ensinamento a quem quer que seja. Dentro de uma Universidade, cumpre função didática diferenciada, de rara importância: a reflexão sobre a coerência entre ética e estética e sobre a ética de uma estética.
Faço agora algumas anotações sobre metáforas imagísticas que sinto permanecerem pairando indagadoras, perscrutadoras por toda obra. Destaco uma delas, sintetizada nas imagens da capa e na contracapa do Livro. A foto da capa, sobretudo, emana certo mistério impenetrável. Tenho muita curiosidade sobre histórias que possam estar subjacentes a esta maravilhosa foto, do ponto de vista factual. Quem sabe o autor publique alguma coisa sobre isto, algum dia. Não obstante, quero sugerir que o leitor se indague sobre a metáfora que ela contém. Nela vê-se a figura do equilibrista, em ação e na mira do público em expectativa. Nesta senda da metáfora do equilibrista, sugiro ainda que o leitor também lance olhar reflexivo sobre uma obra do final da vida de Paul Klee, na qual o artista revisita a imagem do equilibrista, imagem que, de resto perpassa a história da pintura. Trata-se de uma tela cujo título é “Übermutt: Allegorie der küstlerischer Existenz”. [4] Nela, Klee nos traz, como na foto de Achutti, duas perplexidades: a primeira é o ‘excesso de coragem’ da ação do equilibrista - significado aproximado do vocábulo “Übermutt”, de difícil tradução, e cujo sentido tem o que haver com o que os gregos entendiam como “hýbris”; a segunda perplexidade emerge do significado do trabalho do equilibrista sobre a corda bamba, o qual Klee refere como sendo a ‘alegoria da existência artística’ [5]. Por este fulcro, leio a capa e a contracapa do Livro como sendo fotograficamente dois auto-retratos de Achutti: o da capa, o equilibrista (bela metáfora de sua existência artística); o da contracapa, a ação da busca do instante luz, da imagem, o fotógrafo na ação de fotografar. Nesta foto, a cena tem lugar no cais do porto de POA. Enxerga-se o artista pela sua própria sombra, na parede amarela. Ele está fotografando en plein air com a câmera sobre tripé e em pleno ar. À direita, os armazéns, e à esquerda a água do porto, invisível na imagem, presença de uma ausência; o chão de pedras mira o fundo que se perde entre guindastes e céu. O ponto de fuga, o infinito do cenário que ele e sua sombra focam, constitui uma rima com a foto da estrada nua que se enxerga no final da exposição da Sala Fahrion.
Desde as primeiras fotos de Achutti que enxerguei, tive a impressão de que ele escolhia/escolhe determinado instante-luz da alma das coisas, da natureza, das gentes. Dou como exemplo três fotos que não me saem das retinas e da memória: uma de um carnaval em Ouro Preto (visão de Ballet?), outra de um menino banhando-se na água que sai do cântaro da Samaritana (reminiscência chapliniana?); uma terceira, o instante-luz em que Fafá de Belém solta a pomba, no comício das “Diretas Já”, em Porto Alegre, ao cair da noite.
Aprende-se com a arte de Achutti que é pela imagem que ele reflete sobre a realidade, criando ao mesmo tempo a linguagem do seu filosofar. Seus instantes percebidos e registrados nestes 35 nos revelam numerosos significados do Zeitgheist da virada do milênio. Mais que uma investigação sócio-foto-etnográfica, sua obra é um mergulho na reflexão do espírito de seu tempo.
A UFRGS está duplamente de parabéns com o projeto pelo qual idealiza e realiza a exposição, e a documentação dela, através de Achutti – Percurso do Artista, Livro biográfico / autobiográfico. Porque duplamente e por que de parabéns? Porque com este projeto a Universidade valoriza o fotógrafo, o sociólogo e o professor, divulgando o pensamento e a obra dele, de maneira significativa, digna de si – Universidade – e dele – mestre e artista – e realiza, em tempo real (sic), efetiva ação educativa para a comunidade acadêmica e para o público em geral.
A idéia e o desejo de escrever sobre o novo Livro de Achutti emergiu do convívio e do aprendizado com sua obra, nestes 35 anos em que o acompanhei. Lendo-o e relendo-o ficou-me evidente que não era ‘um catálogo a mais’, mas sim um Livro com a biografia / autobiografia de Achutti, Livro primorosamente ordenado em 6 capítulos – Curador, Escritos sobre o Artista, Exposição Percurso do Artista, Crônicas, Cronologia e Fotografias.
Quanto aos auto-retratos a que referi, enquanto imagens e fotografias, eles confirmam o que Achutti escreveu no texto curatorial para a Exposição A Universidade da Fotografia (POA, 2003) : “Refratário a tudo que é do terreno do aleatório ou do presunçoso, tenho para mim que a única fotografia possível, a fotografia ideal, é aquela resultante de uma iluminada expressão do desejo”. [6]
Flávio Oliveira – Músico
[1] CARMO, Paulo Roberto do. Crisbal, o Guerreiro. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1966.
[2] Vide o verbo latino fero, tuli, latum, ferre.
[3] ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. Belo Horizonte: Edições Pindorama, 1930.
[6] Projeto Percurso do Artista: Achutti / [catálogo da exposição organizada pelo DDC-UFRGS, artista Luiz Eduardo Robinson Achutti.] Porto Alegre: UFRGS 2011. Pág. 46.
Belissimo texto, muito transparente. Me impressiona porque com frequencia me deparo diante da capacidade limitada para expressar sentimentos por meio de palavras. Elas dizem menos do que eu gostaria de traduzir. Mas pelo que percebo aqui, as palavras não são um limitante pra você. Parabéns!
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